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As Crônicas dos Kane - CAP. 3

.. sexta-feira, 1 de março de 2013
Aprisionada com minha gata

SADIE


[DÊ LOGO A DROGA DO MICROFONE.]
Oi. Aqui é Sadie. Meu irmão é uma droga como contador de histórias. Peço desculpas por isso. Mas agora eu estou aqui, então tudo vai ficar bem.
Vejamos. A explosão. A Pedra de Roseta em um milhão de pedaços. O diabo de fogo. Papai dentro de um caixão. O francês apavorante e a garota árabe com uma faca. Nós dois desmaiados. Certo.
Assim que acordei, a polícia já estava lá, como era de esperar. Eles me separaram do meu irmão. Eu não me incomodei com essa parte. Ele é mesmo chato. Mas me trancaram no escritório do curador por séculos. E, sim, eles usaram nossa corrente de prender bicicleta para isso. Cretinos.
Eu estava arrasada, é claro. Tinha acabado de ser nocauteada por um sei lá o quê de fogo. Tinha visto meu pai ser encaixotado em um sarcófago e afundar no chão. Tentei contar tudo isso à polícia, mas eles se interessaram? Não.
Pior de tudo: eu sentia um arrepio persistente, como se alguém enfiasse agulhas geladas em minha nuca. Começou quando eu olhei para aquelas palavras azuis e brilhantes que meu pai escrevera na Pedra de Roseta e soube o que significavam. Uma doença de família, talvez? Pode o conhecimento dessas chatices sobre o Egito ser hereditário? Com a sorte que eu tenho...
Muito tempo depois de meu chiclete ter perdido o sabor, a policial finalmente me deixou sair do escritório. Não me fizeram perguntas. Apenas me conduziram até uma viatura policial e me levaram para casa. Mesmo então, não tive permissão para explicar nada a meus avós. A policial simplesmente me levou para meu quarto e lá eu esperei. E esperei.
Não gosto de esperar.
Andei de um lado para o outro. Meu quarto não tinha nada de especial, era só um sótão com uma janela, uma cama e uma escrivaninha. Não havia muito o que fazer ali. Muffin farejou minhas pernas e sua cauda se arrepiou como uma escova de dentes. Acho que ela não gosta do cheiro de museus. Ela sibilou e desapareceu embaixo da cama.
— Muito obrigada — resmunguei.
Abri a porta, mas a policial estava em pé do lado de fora.
— O inspetor virá falar com você logo — informou ela. — Por favor, fique lá dentro.
Eu podia ver lá embaixo: apenas um vislumbre rápido de meus avós andando pela sala, retorcendo as mãos, enquanto Carter e o inspetor de polícia conversavam no sofá. Não consegui ouvir o que eles diziam.
— Posso ir ao banheiro? — perguntei à gentil policial.
— Não.
Ela fechou a porta na minha cara.
Como se eu pudesse provocar uma explosão no banheiro. Francamente.
Peguei meu iPod e examinei a playlist. Nada me interessava. Aborrecida, eu me joguei na cama. Quando estou distraída demais para a música, a situação é realmente triste. Por que Carter tinha sido o primeiro a falar com a polícia? Isso não era justo.
Mexi no colar que papai tinha me dado. Nunca soube ao certo o significado daquele símbolo. O de Carter era um olho, evidentemente, mas o meu parecia um anjo, ou talvez um robô alienígena assassino.
Por que meu pai perguntou se eu ainda tinha o amuleto? É claro que eu ainda o tinha. Era o único presente que ele um dia me dera. Bem, além da Muffin, e com o comportamento daquela gata, eu não sabia se podia chamá-la mesmo de presente.
Papai praticamente me abandonara quando eu tinha seis anos, afinal. O colar era o único elo que eu tinha com ele. Nos dias bons, eu olhava para o amuleto e me lembrava de papai com carinho. Nos dias ruins (que eram muito mais frequentes), eu o jogava do outro lado do quarto e pisava nele, e amaldiçoava meu pai por não estar por perto, uma atitude que eu achava muito terapêutica. Mas, no final, sempre devolvia o pingente ao meu pescoço.
De qualquer maneira, durante toda aquela esquisitice no museu – e eu não estou inventando nada disso — o colar tinha ficado mais quente. Eu quase o tirei, mas não podia deixar de pensar se ele estava realmente me protegendo de alguma forma.
“Farei tudo ser muito melhor”, papai tinha dito com aquela expressão culpada que ele sempre exibe quando está comigo.
Bem, tinha sido um fracasso colossal, pai.
O que ele estava pensando? Eu queria acreditar que tudo não tinha passado de um pesadelo: os hieróglifos brilhantes, o cajado que virava cobra, o caixão. Essas coisas simplesmente não acontecem. Mas eu sabia que não era exatamente assim. Eu não teria sido capaz de sonhar com nada tão horrível quanto o rosto do homem de fogo quando ele se virou para nós. “Em breve, menino”, ele tinha dito a Carter, como se pretendesse nos encontrar.
Imaginar era suficiente para fazer minhas mãos tremerem. Eu também não conseguia deixar de pensar na parada na Agulha de Cleópatra, em como papai tinha insistido em ver aquele lugar, como se estivesse tomando coragem, como se o que ele pretendia fazer no British Museum tivesse alguma relação com minha mãe. Meus olhos vagaram pelo quarto e pararam na escrivaninha.
Não, pensei. Não vou fazer isso.
Mas eu fui até lá e abri a gaveta. Empurrei para o lado algumas moedas velhas, meu estoque de doces, uma coleção de lições de matemática que eu tinha esquecido de entregar e algumas fotos com minhas amigas Liz e Emma, experimentando chapéus ridículos no Camden Market. E embaixo de tudo isso estava o retrato de mamãe.
Meus avós tinham pilhas de fotos. Eles mantinham um altar para Ruby no armário do corredor: trabalhos de arte que minha mãe tinha feito na infância, suas notas sempre fabulosas, a foto da formatura na universidade, suas joias favoritas. É absolutamente doentio. Eu estava determinada a não ser como eles, a não viver no passado.
Mal me lembrava de minha mãe, afinal, e nada podia mudar o fato de ela estar morta. Mas eu guardava aquela única foto. Mamãe e eu em nossa casa em Los Angeles, logo depois de eu ter nascido.
Ela estava em pé na varanda, com o oceano Pacífico atrás, segurando um bebê gordinho e cheio de dobras que um dia cresceria e se tornaria uma pessoa. O bebê nem chamava muita atenção, mas mamãe estava linda, mesmo de short e camiseta velha. Seus olhos eram azuis. Os cabelos louros estavam presos por uma fivela. A pele era perfeita.
Comparada à dela, a minha é deprimente. As pessoas sempre dizem que sou parecida com ela, mas eu não conseguia nem ao menos me livrar das espinhas, quem dirá parecer assim tão linda e madura.
[Pare de fazer careta, Carter.]
A foto me fascinava porque eu quase não me lembrava do tempo que tivemos juntas. Mas a principal razão para eu guardar aquele retrato era o símbolo na camiseta de minha mãe: um daqueles símbolos de vida – um ankh.
Minha mãe, morta, ostentando um símbolo de vida. Nada podia ser mais triste. Mas ela sorria para a câmera como se soubesse um segredo. Como se ela e meu pai compartilhassem uma piada só deles.
Lá no fundo, alguma coisa me incomodava. Aquele homem encorpado no casaco comprido, aquele que estivera conversando com meu pai na frente de casa – ele tinha dito alguma coisa sobre o Per Ankh. Será que ele estava se referindo ao ankh, símbolo da vida? E, se sim, o que era um per? Não podia ser pera, podia? A fruta?
Eu tinha a sinistra sensação de que, se as palavras Per Ankh vissem escritas em hieróglifos, saberia o significado.
Guardei a fotografia de mamãe. Peguei um lápis e virei uma das folhas do dever de casa que eu não tinha chegado a entregar. O que aconteceria se eu tentasse desenhar as palavras Per Ankh? Eu saberia qual era o desenho correto?
Quando encostei o lápis no papel, a porta de meu quarto se abriu.
— Srta. Kane?
Eu me virei e deixei cair o lápis.
Um inspetor de polícia estava parado na porta, sério.
— O que está fazendo?
— Dever de matemática — respondi.
O pé-direito era baixo, por isso o inspetor precisou se abaixar para entrar. Ele vestia um terno de cor neutra, que combinava com os cabelos acinzentados e o rosto pálido.
— Muito bem, Sadie. Sou o inspetor Williams. Vamos conversar, está bem? Sente-se.
Eu não me sentei, nem ele, o que provavelmente o aborreceu. É difícil parecer uma figura de autoridade quando você está curvado como o Quasímodo.
— Fale tudo o que sabe, por favor — pediu ele. — Desde o momento em que seu pai chegou para buscá-la.
— Eu já disse tudo à polícia no museu.
— Conte mais uma vez, se não se importar.
Eu disse tudo de novo. Por que não? A sobrancelha esquerda dele subia cada vez mais, empurrada pelos trechos mais estranhos de meu depoimento, como as letras brilhantes e o cajado que virava serpente.
— Muito bem, Sadie — disse o inspetor. — Você tem uma imaginação incrível.
— Não estou mentindo, inspetor. E acho que sua sobrancelha está tentando fugir.
Ele tentou olhar para as próprias sobrancelhas, depois franziu a testa.
— Escute, Sadie, tenho certeza de que tudo isso é muito difícil para você. Entendo que queira proteger a reputação de seu pai. Mas ele já se foi...
— Foi afundado no chão dentro de um caixão, você quer dizer — insisti. — Ele não está morto.
O inspetor Williams abriu as mãos.
— Sadie, eu sinto muito. Mas precisamos descobrir por que ele praticou esse ato de... bem...
— Ato de quê?
Ele pigarreou incomodado.
— Seu pai destruiu artefatos muito valiosos e, aparentemente, acabou se matando nesse processo. Gostaríamos muito de saber por quê.
Eu o encarei.
— Está dizendo que meu pai é um terrorista? Você é louco?
— Telefonamos para alguns conhecidos de seu pai. Soubemos que o comportamento dele tornou-se estranho depois da morte de sua mãe. Ele se retraiu e desenvolveu certa obsessão por seus estudos, passando mais e mais tempo no Egito...
— Ele é egiptólogo! Você devia estar procurando por ele, em vez de fazer perguntas estúpidas!
— Sadie — começou o inspetor, e sua voz sugeria que ele continha com esforço o impulso de me estrangular.
É estranho, eu sempre provoco esse tipo de reação nos adultos.
— Existem grupos de terroristas extremistas no Egito, e eles não concordam que artefatos egípcios sejam mantidos em museus de outros países. Essas pessoas podem ter procurado seu pai. Talvez, no estado em que estava, seu pai tenha se tornado alvo fácil para eles. Se tiver ouvido ele mencionar algum nome...
Eu passei por ele e fui até a janela. Estava tão furiosa que não conseguia pensar. Eu me recusava a acreditar que papai estivesse morto. Não, não, não. E um terrorista? Por favor! Por que os adultos eram sempre tão idiotas?
Eles sempre repetem “diga a verdade”, e quando você diz, eles não acreditam no que ouvem. De que adianta?
Olhei para a rua escura. De repente, aquela sensação de arrepio gelado ficou pior do que nunca. Foquei a árvore morta onde havia encontrado meu pai mais cedo. No mesmo local, sob uma lâmpada da rua, olhando para mim, estava o sujeito do casaco comprido, dos óculos redondos e do chapéu – o homem que meu pai tinha chamado de Amós.
Suponho que eu deveria me sentir ameaçada ao descobrir que um homem me encarava da escuridão da noite. Mas sua expressão era de autêntica preocupação. E ele me parecia muito familiar. Era irritante não conseguir lembrar por quê.
Atrás de mim, o inspetor pigarreou.
— Sadie, ninguém a culpa pelo ataque ao museu. Compreendemos que você foi levada ao local contra sua vontade.
Eu me virei para ele.
— Contra minha vontade? Eu tranquei o curador no escritório.
A sobrancelha do inspetor voltou a subir.
— Mesmo assim, você não sabia quais eram as intenções de seu pai. É possível que seu irmão esteja envolvido?
Eu ri.
— Carter? Por favor!
— Então, está determinada a protegê-lo, também. Acha mesmo que ele é seu irmão?
Eu não podia acreditar no que ouvia. Queria socar o nariz dele.
— O que você quer dizer com isso? É porque ele não tem a mesma aparência que eu?
O inspetor piscou.
— Eu só quis dizer...
— Eu sei o que você quis dizer. É claro que ele é meu irmão!
O inspetor Williams levantou as mãos pedindo desculpas, mas eu ainda estava furiosa. Por mais que Carter me aborrecesse, eu odiava quando as pessoas imaginavam que nós não éramos irmãos, ou quando olhavam meu pai com espanto quando ele dizia que éramos os três da mesma família. As pessoas olhavam para nós como se tivéssemos feito algo errado. O estúpido Dr. Martin no museu. O inspetor Williams. Acontecia o tempo todo, sempre que papai, Carter e eu estávamos juntos. Todas as vezes.
— Sinto muito, Sadie — desculpou-se o inspetor. — Só quero me certificar de distinguir culpados de inocentes. Vai ser mais fácil para todo mundo se você colaborar. Qualquer informação serve. Alguma coisa que seu pai tenha dito. Pessoas que ele tenha mencionado.
— Amós — falei, só para ver como ele reagiria. — Ele encontrou um homem chamado Amós.
O inspetor Williams suspirou.
— Sadie, isso é impossível. E você com certeza sabe disso. Falamos com Amós há menos de uma hora, e ele nos atendeu por telefone, da casa dele em Nova York.
— Ele não está em Nova York! — insisti. — Está bem...
Olhei pela janela e Amós havia desaparecido. Típico.
— Isso não é possível — afirmei.
— Exatamente — o inspetor concordou.
— Mas ele estava aqui! — exclamei. — Quem é ele? Um dos colegas de papai? Como você sabia para onde devia telefonar?
— Sadie, é melhor parar com a farsa.
— Farsa?
O inspetor me estudou por um momento, depois ergueu o queixo como se tivesse tomado uma decisão.
— Carter já nos disse a verdade. Não queria incomodá-la, mas ele nos contou tudo. Ele entende que é inútil tentar proteger seu pai agora. É melhor que também coopere conosco, e não haverá nenhuma acusação contra você.
— Você não devia mentir para crianças! — gritei, esperando que alguém me ouvisse lá embaixo. — Carter jamais diria uma palavra contra papai, e eu também não direi!
O inspetor não teve nem a decência de se mostrar constrangido. Ele cruzou os braços.
— Lamento que pense dessa maneira, Sadie. Bem, acho que é hora de descermos... para discutir as consequências com seus avós.

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