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As Crônicas dos Kane - CAP. 4

.. sexta-feira, 1 de março de 2013

Raptada por alguém não tão estranho


SADIE

EU SIMPLESMENTE ADORO REUNIÕES DE FAMÍLIA. Muito aconchegantes, com as guirlandas de Natal emoldurando a lareira, um delicioso bule de chá e um detetive da Scotland Yard pronto para prender você.
Carter estava encolhido no sofá, abraçado a bolsa carteiro de nosso pai. Não sei por que a polícia permitiu que ele ficasse com aquilo. Devia ser uma prova ou alguma coisa do tipo, mas o inspetor nem parecia notá-la.
Carter parecia horrível – quer dizer, ainda pior do que de costume. Francamente, o menino nunca tinha estado em uma escola de verdade, e ele se vestia como um professor em início de carreira, com calça cáqui, camisa de botões e mocassins nos pés. Ele não é feio, acho. É razoavelmente alto, está em forma, e os cabelos não são tão ruins. Ele tem os olhos do papai, e minhas amigas Liz e Emma até disseram que ele é sexy quando viram sua foto, um comentário que devo considerar com certa moderação porque (a) ele é meu irmão e (b) minhas amigas são meio malucas. Com relação às roupas, Carter não saberia reconhecer o que é sexy nem que caísse sobre sua cabeça.
[Ah, não olhe para mim desse jeito, Carter. Você sabe que é verdade.]
De qualquer maneira, eu não devia ser tão dura com ele. Meu irmão estava ainda pior do que eu com o desaparecimento de papai.
Vovó e vovô estavam sentados com ele, um de cada lado, e pareciam bem nervosos. O bule de chá e um prato com biscoitos haviam sido deixados sobre a mesa, mas ninguém se servia. O inspetor Williams ordenou que eu me sentasse na única cadeira disponível. Em seguida, começou a andar diante da lareira com ar de grande importância. Dois outros policiais estavam parados diante da porta da frente – a mulher de antes e um guarda grandalhão que não tirava os olhos dos biscoitos.
— Sr. e Sra. Faust — começou o inspetor Williams — receio termos aqui duas crianças que não querem cooperar.
Vovó mexia na bainha do vestido. É difícil acreditar que ela tenha algum parentesco com nossa mãe. Vovó é frágil e sem cor, como uma pessoa desenhada com palitinhos, enquanto, nas fotos, mamãe parece sempre muito feliz e cheia de vida.
— São só crianças — ela conseguiu dizer. — Certamente, não pode culpá-las.
— Ah! — exclamou meu avô. — Isso é ridículo, inspetor. Eles não são responsáveis!
Meu avô é ex-jogador de rúgbi. Ele tem braços grandes, a barriga redonda demais para caber na camisa e olhos fundos, como se alguém os tivesse socado (bem, na verdade, meu pai os socou há alguns anos, mas essa é outra história). A aparência de vovô é assustadora. Normalmente, as pessoas desviam do caminho dele, mas o inspetor Williams não parecia impressionado.
— Sr. Faust — disse ele — já imaginou como serão as manchetes dos jornais de amanhã? “British Museum atacado. Pedra de Roseta destruída.” Seu genro...
— Meu ex-genro — corrigiu vovô.
— ... provavelmente foi pulverizado na explosão, ou fugiu, e nesse caso...
— Ele não fugiu! — gritei.
— Precisamos saber onde ele está — continuou o inspetor. — E as únicas testemunhas, seus netos, recusam-se a dizer a verdade.
— Nós dissemos a verdade — retrucou Carter. — Papai não está morto. Ele afundou no chão.
O inspetor Williams olhou para meu avô como se dissesse: Pronto, está vendo? Depois, ele se virou para Carter.
— Mocinho, seu pai cometeu um ato criminoso. E deixou para vocês as consequências.
— Isso não é verdade! — disparei, ouvindo minha voz tremer de raiva.
Não podia acreditar que papai nos deixaria intencionalmente à mercê da polícia, é claro. Mas a ideia de ser abandonada por ele... bem, talvez eu já tenha mencionado, esse é um assunto delicado para mim.
— Querida, por favor — disse vovô — o inspetor só está fazendo o trabalho dele.
— Mal feito! — respondi.
— Vamos todos tomar chá — sugeriu vovó.
— Não! — Carter e eu gritamos ao mesmo tempo, o que me fez me sentir mal pela vovó, que praticamente se encolheu no sofá.
— Nós podemos denunciá-lo — disse o inspetor, olhando para mim. — Podemos e vamos...
Ele parou de repente. Depois piscou várias vezes, como se tivesse esquecido o que estava fazendo.
Vovô estranhou a atitude do policial.
— Ah, inspetor?
— Sim... — o inspetor Williams murmurou sonhador.
Ele pôs a mão no bolso e retirou um livreto de capa azul: um passaporte americano. E o jogou no colo de Carter.
— Você está sendo deportado — anunciou. — Deve deixar o país em vinte e quatro horas. Se precisarmos interrogá-lo novamente, o FBI entrará em contato.
Carter estava boquiaberto. Ele olhou para mim, e eu sabia que não estava imaginando toda aquela situação estranha. O inspetor havia mudado completamente de atitude. Pouco antes se preparava para nos prender, eu estava certa disso, e, de repente, do nada, ele deportava Carter? Até os outros policiais pareciam confusos.
— Senhor? — a policial manifestou-se. — Tem certeza...?
— Quieta, Linley. Vocês dois podem ir.
Os policiais hesitaram até Williams fazer um gesto com a mão, expulsando-os. Então, eles se retiraram e fecharam a porta ao sair.
— Espere aí — disse Carter. — Meu pai desapareceu e você quer que eu deixe o país?
— Ou seu pai está morto ou ele é um fugitivo, filho — respondeu o inspetor. — Deportação é a opção mais generosa. E já foi providenciada.
— Por quem? — quis saber meu avô. — Quem autorizou?
— Foram... — O inspetor adotou novamente aquela expressão estranha, vazia. — Foram as autoridades competentes. Acredite, é melhor do que a detenção.
Carter parecia devastado demais para falar, mas, antes que eu pudesse sentir pena dele, o inspetor Williams olhou para mim.
— E você também, mocinha.
Era como se ele tivesse me atingido com uma marreta.
— Está me deportando? — perguntei. — Eu moro aqui!
— É cidadã americana. E, nas atuais circunstâncias, é melhor você voltar para casa.
Eu o encarei sem dizer nada. Não conseguia me lembrar de nenhuma outra casa além daquela em que eu morava. Meus amigos na escola, meu quarto, tudo o que eu conhecia estava ali.
— Para onde eu vou?
— Inspetor — minha avó falou com voz trêmula — isso não é justo. Não creio que...
— Vou lhe dar tempo para se despedir — o inspetor a interrompeu. Depois franziu a testa, como se estranhasse as próprias atitudes. — Eu... preciso ir.
Nada fazia sentido, e o inspetor parecia perceber que tudo ali era absurdo, mas já se dirigia à porta mesmo assim. Quando ele a abriu, eu quase pulei da cadeira, porque o homem de preto, Amós, estava parado do outro lado. Ele tinha se livrado do casaco e do chapéu, mas ainda usava o mesmo terno risca de giz e os mesmos óculos redondos. Seus cabelos trançados reluziam com contas douradas.
Eu achei que o inspetor ia dizer alguma coisa ou manifestar surpresa, mas ele nem reparou na presença de Amós. Apenas passou por ele e caminhou para a noite.
Amós entrou e fechou a porta. Meus avós se levantaram.
— Você — disparou meu avô, furioso. — Eu devia saber. Se fosse mais jovem, ia surrá-lo até deixá-lo no chão.
— Olá, Sr. e Sra. Faust — cumprimentou Amós. Ele olhou para Carter e para mim como se fôssemos problemas que ele devesse solucionar. — É hora de termos uma conversa.
Amós estava bem à vontade. Ele se acomodou no sofá e se serviu de uma xícara de chá. E comeu um biscoito, o que era bem perigoso, porque os biscoitos da vovó eram horríveis.
Eu tinha a impressão de que a cabeça de meu avô ia explodir. Seu rosto estava vermelho-vivo. Ele se aproximou de Amós pelas costas e levantou a mão como se fosse agredi-lo, mas o homem continuou comendo o biscoito.
— Por favor, sentem-se — disse ele.
E todos nós nos sentamos. Isso era o mais estranho – quase como se esperássemos por sua ordem. Até meu avô baixou a mão e deu a volta no sofá. Ele se sentou ao lado de Amós com um suspiro aborrecido.
Amós bebia seu chá e olhava para mim com algum desprazer. Isso não era justo, eu pensei. Eu não tinha uma aparência tão ruim, considerando tudo o que tínhamos acabado de passar. Em seguida, ele olhou para Carter e grunhiu.
— O momento é péssimo — resmungou. — Mas não tem outro jeito. Eles terão de vir comigo.
— Como disse? — perguntei. — Não vou a lugar nenhum com um desconhecido com o rosto sujo de biscoito!
Ele realmente tinha migalhas de biscoito no rosto, mas, aparentemente, não se importava, porque nem se deu o trabalho de verificar.
— Não sou um desconhecido, Sadie — disse ele. — Não lembra?
Era assustador ouvi-lo falar comigo daquele jeito tão familiar. Eu sentia que devia conhecê-lo. Olhei para Carter, mas ele parecia tão intrigado quanto eu.
— Não, Amós — vovó manifestou-se, tremendo. — Não pode levar Sadie. Temos um acordo.
— Julius rompeu esse acordo hoje — retrucou Amós. — Sabe que não pode mais cuidar de Sadie. Não depois do que aconteceu. A única chance deles é virem comigo.
— Por que iríamos com você a algum lugar? — perguntou Carter. — Você quase brigou com meu pai!
Amós olhou para a bolsa no colo de Carter.
— Vejo que está com a bolsa de seu pai. Isso é bom. Vai precisar dela. Quanto a me meter em brigas, Julius e eu brigávamos muito. Se não percebeu, Carter, eu estava tentando impedi-lo de fazer uma bobagem. Se ele tivesse me ouvido, agora não estaríamos nesta situação.
Eu não tinha ideia do que ele estava falando, mas meu avô parecia entender.
— Você e suas superstições! — exclamou ele. — Eu disse que não queríamos nos meter nisso.
Amós apontou para o quintal nos fundos. Pelas portas envidraçadas era possível ver as luzes brilhando sobre o Tâmisa. Era uma vista belíssima à noite, quando não se podia notar quanto alguns edifícios estavam malconservados.
— Superstição, é? — perguntou Amós. — Mas você achou um lugar para morar na margem leste do rio.
Vovô ficou ainda mais vermelho.
— Foi ideia de Ruby. Ela achou que isso nos protegeria. Mas Ruby se enganou sobre muitas coisas, não é? Por exemplo, ela confiou em Julius e em você!
Amós parecia inatingível. Ele tinha um perfume interessante – temperos antigos, goma-copal e âmbar, como o cheiro das lojas de incenso em Covent Garden. Ele terminou de beber seu chá e olhou diretamente para minha avó.
— Sra. Faust, a senhora sabe o que começou. A polícia é a menor de suas preocupações.
Minha avó engoliu em seco.
— Você... você mudou o pensamento do inspetor. Você o fez deportar Sadie.
— Era isso ou as crianças irem presas.
— Espere aí — interrompi os dois. — Você mudou os pensamentos do inspetor Williams? Como?
Amós deu de ombros.
— Não é nada permanente. Na verdade, precisamos chegar a Nova York na próxima hora, mais ou menos, antes que o inspetor comece a se perguntar por que os deixou escapar.
Carter ria com incredulidade.
— Ninguém consegue ir de Londres a Nova York em uma hora. Nem mesmo o avião mais veloz...
— Não — concordou Amós. — Um avião não consegue. — Ele olhou novamente para vovô como se tudo estivesse resolvido. — Sra. Faust, Carter e Sadie só têm uma opção segura. Sabem disso, não é? Eles irão para a mansão no Brooklyn. Lá poderei protegê-los.
— Você tem uma mansão — disse Carter. — No Brooklyn.
Amós sorriu para ele como se o comentário o divertisse.
— É a mansão da família. Lá vocês estarão seguros.
— Mas nosso pai...
— Vocês nada podem fazer por ele agora — declarou Amós com tristeza. — Lamento, Carter. Explicarei mais tarde, mas posso garantir que Julius ia querer que ficassem em segurança. E, para isso, precisamos ser rápidos. Receio ser tudo o que você tem.
Foi um comentário meio grosseiro, eu achei. Carter olhou para vovô e para vovó. Depois, ele assentiu, triste. Sabia que eles não o queriam por perto. Carter era, para eles, um lembrete constante de nosso pai. E, sim, essa era uma razão estúpida para não acolher o próprio neto, mas era assim.
— Bem, Carter pode fazer o que ele quiser — eu me manifestei. — Mas eu moro aqui. E não vou a lugar algum com um estranho, vou?
Olhei para vovó esperando obter apoio, mas ela olhava para as toalhinhas de renda sobre a mesa como se, de repente, elas fossem muito interessantes.
— Vovô, com certeza...
Mas ele também não olhava para mim. Seus olhos estavam fixos em Amós.
— Pode tirá-los do país?
— Espere aí! — protestei.
Amós levantou-se e limpou as migalhas do paletó. Ele caminhou até as portas envidraçadas e olhou para o rio.
— Logo a polícia estará de volta. Digam o que quiserem aos oficiais. Eles não nos encontrarão.
— Você vai nos raptar? — perguntei, chocada. Olhei para Carter. — Acredita nisso?
Carter pendurou a bolsa no ombro. Em seguida, ele se levantou como se estivesse pronto para partir. Era possível que só quisesse sair da casa de nossos avós.
— Como planeja chegar a Nova York em uma hora? — perguntou ele a Amós. — Já disse que um avião não poderia...
— Não — concordou Amós.
Ele aproximou o dedo da janela embaçada e fez um desenho: outro maldito hieróglifo.
— Um barco — disse eu, percebendo em seguida que tinha traduzido aquilo em voz alta, e eu não deveria saber fazer isso.
Amós olhou para mim por cima dos óculos redondos.
— Como...
— Quis dizer que esse último desenho parece ser de um barco — expliquei, apressada. — Mas não pode ser isso. Seria ridículo.
— Veja! — Carter gritou.
Eu me aproximei dele e da porta que levava aos fundos. No píer, vimos um barco ancorado. Mas não era um barco comum. Não, era um barco egípcio com duas tochas acesas na frente e um grande leme na parte de trás.
Uma figura de casaco longo preto com a cabeça coberta por um chapéu – possivelmente Amós – esperava na posição do condutor da embarcação.
Vou confessar que, pela primeira vez, fiquei sem palavras.
— Vamos viajar naquilo — Carter deduziu — para o Brooklyn.
— É melhor irmos logo — disse Amós.
Eu me virei para minha avó.
— Vovó, por favor!
Ela limpou uma lágrima do rosto.
— É para seu bem, minha querida. Leve Muffin.
— Ah, sim — concordou Amós. — Não podemos esquecer a gata.
Ele se dirigiu à escada. Como se atendesse a um chamado, Muffin desceu nesse momento e saltou para meus braços. E ela nunca fazia isso.
— Quem é você? — perguntei a Amós. Era evidente que eu não tinha opção, mas queria respostas, pelo menos. — Não podemos simplesmente partir com um desconhecido.
— Não sou um desconhecido. — Amós sorriu para mim. — Sou da família.
E, de repente, eu me lembrei daquele rosto sorrindo, dizendo: “Feliz Aniversário, Sadie”. Era uma recordação tão distante que eu quase a tinha esquecido.
— Tio Amós? — perguntei, atordoada.
— Exatamente, Sadie — respondeu ele. — Sou irmão de Julius. Agora, venham comigo. Temos um longo caminho a percorrer.

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